a dona dos pensamentos

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Na noite terrível, substância natural de todas as noites,



Na noite de insônia, substância natural de todas as minhas noites

Relembro, velando em modorra incomoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito da vida.
Relembro, e uma angustia
Espalha-se por mim todo, como um frio do corpo ou um medo.

O irreparável do meu passado – esse é que é o cadáver!
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam pode ser que existam algures,

Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.

Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei..

O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido –
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso – e foi afinal o melhor de mim- é que nem os Deuses fazem viver...

Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda ao invés de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro

Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.

Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Não virei, nem pensei em virar e só agora vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer, nesse momento surgem-me todas,

Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.

O que falhei deveras não tem esperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,

Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?


Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos.

Nesta noite em que não durmo e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível para mim.

                                                                           11/05/1928

                            Álvaro de Campos – Fernando Pessoa.

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Gabriel o Pensador